DISTORÇÃO, SINUOSIDADE, MONTAGEM E ABSTRAÇÃO
A segunda metade século XIX foi um divisor de águas na história da arte européia. Foi uma época de um rompimento feroz e abrupto com a tradição das academias - que já alcançavam cinco séculos de imposição dogmática, tanto estética quanto filosófica – tradição esta representada por um estilo de forte inspiração neoclássica, esse rompimento fez com que surgisse a Arte Moderna. Esta apresentava uma diversidade de movimentos, idéias e ideais - os denominados ”ismos” - que tinham como principal característica o repúdio à representação naturalista clássica e seu ideal de beleza universal.
Devemos destacar neste processo o papel importantíssimo dos chamados Impressionistas que iniciaram a rejeição às idéias pregadas pelas academias, que não mais interessados em produzir uma arte de inspiração renascentista com cenas rígidas, frias e estáticas sobre os temas que há séculos vinham sendo impostos - uma arte de caráter imitativo – resolveram experimentar, não só novas paletas, mas também novos temas e formas de representação.
Ao romperem com a arte tradicional, os artistas que vieram a seguir (a grande maioria interessados na arte produzida por povos ditos “primitivos”), começaram a questionar a idéia única de beleza em voga tanto nas artes e quanto no gosto do público. E esse questionamento levou a pergunta primordial: Todos os objetos (artísticos e utilitários) produzidos pelas culturas humanas através de sua história poderiam corresponder e incorporar normas universais de beleza? E desde então a definição de um sistema ou método que resulte na representação, de “uma beleza pura” ou de “uma beleza universal” - que possa ser válida para todas as culturas e ser também atemporal – foi abandonado e a arte e o fazer artístico foi cada vez mais se aproximando dos procedimentos lúdicos, criativos e imaginativos
Esse rompimento com a tradição e o inicio de experimentações levou os artistas a procurarem novos caminhos e subterfúgios para a criação, entre eles quatro conceitos – distorção, sinuosidade, montagem e abstração - que foram explorados e aplicados nesse novo fazer artístico.
Distorção, significa “ato ou resultante de distorcer, efeito que distancia do original, da realidade”, pode significar também diferenciar algo já conhecido, utilizando determinadas idéias e formas. Podemos entender essa diferença como expressão, ou seja, o modo de ver e produzir de um individuo acerca de um mundo de experiências e conhecimentos coletivos e compartilhados.
O público não acostumado com a distorção dos cânones então vigentes, teve a falsa impressão de falta de habilidade ou treinamento por parte do artista.
“os principiantes [...] querem admirar a perícia do artista em representar as coisas tal como eles a vêem. Gostam mais de pinturas que ‘parecem reais’. [...] A paciência e a habilidade que contribuem para a reprodução fiel do mundo visível são, por certo, dignas de admiração. [...] Mas o que aborrece as pessoas que gostam de quadros parecendo ‘reais’ é o fato de considerarem certas obras incorretamente desenhadas, sobretudo quando pertencem a um período mais moderno em que o artista ‘tem obrigação de não cometer semelhantes desvios’. De fato, não há mistério nenhum a respeito dessas distorções da natureza, sobre as quais ainda ouvimos queixas e protestos envolvendo a arte moderna. Quem lê histórias em quadrinhos sabe tudo em relação a isso. Sabe que, às vezes, é certo desenhar coisas de um modo diferente do que elas se apresentam aos nossos olhos, modificá-las ou distorcê-las num ou noutro sentido. [...] Se um artista moderno ‘desenha’ alguma coisa à sua maneira, está sujeito que o considerem incapaz de fazer coisa melhor. A questão é que estamos armados de preconceitos em relação ao que deva ser ‘Arte’ [...]. “ (GOMBRICH, 1999)
E dessa forma é certo dizer que “a distorção expressa uma visão subjetiva do mundo e, assim, nos introduz em atmosferas estranhas, impregnadas de afeto, emoções ou temores.”[i] Além da distância da realidade – objetiva e naturalista - criada pela distorção, podemos observar também um novo questionamento acerca das relações entre o figura e o fundo, o abandono do peso – tanto metafórico quanto material que a tradição acadêmica punha sobre a obra e o artista – e de sua aparente inércia, abriu precedentes para a utilização de formas orgânicas e linhas sinuosas que podemos observar principalmente na Art Nouveau que se utilizou desse subterfúgio a exaustão.
Essa sinuosidade nos remete também a flexibilidade de limites ( mistura /fusão ) e sua relação dinâmica dentro da obra, e para além, para o quotidiano dessa nova época com seus trens , carros e o corre-corre da vida do homem comum. O dinamismo e o movimento também nos são apresentados em uma nova invenção: o cinema.
“O cinema opera por meio de fotogramas, isto é, de cortes imóveis, vinte e quatro imagens/segundo (ou dezoito no início). Mas o que ele nos oferece, como foi muitas vezes constatado, não é o fotograma, mas uma imagem media a qual o movimento não se acrescenta, não se adiciona: ao contrário, o movimento pertence a imagem-média enquanto dado imediato. Objetar-se-á que o mesmo acontece no caso da percepção natural. Mas aí a ilusão é corrigida antes da percepção pelas condições que a tornam possível no sujeito. [...] Em suma, o cinema oferece uma imagem a qual acrescentaria movimento, ele nos oferece imediatamente uma imagem-movimento. Oferece-nos um corte, mas um corte móvel e não um corte imóvel + movimento abstrato.” ( DELEUZE, 1983)
O cinema – aqui representado por Vertov e Einsenstein - em conjunto com a colagem cubista – a terceira fase do cubismo também chamada de Cubismo Sintético – encontravam nos sistemas e práticas de montagem seus fundamentos de pesquisa visual. As colagens de Picasso e Braque, por causa de sua espacialidade, são de suma importância, pois são diretamente responsáveis pela “dissolução entre figura e fundo e entre objeto e espaço, que logo abriu um caminho para a abstração na pintura e na escultura, um novo vocabulário e uma nova sintaxe para a arquitetura, o design e a moda”[ii] que podem ser observados do construtivismo à Bauhaus.
“Podemos dizer então que o emprego da montagem permitiu uma passagem histórica entre dois modos de articulação da forma na arte: de um cuja coerência se baseava num referente externo e reconhecível (como seria a garrafa na obra cubista), para outro de coerência estrutural e auto-referente, isto é, baseada nos próprios procedimentos e materiais da obra (como as propriedades dos diferentes metais na obra construtivista).”[iii]
A abstração pode ser vista como conseqüência da práxis de vários artistas modernos, “razão pela qual a própria idéia de arte moderna se mistura com a de arte abstrata.”[iv] Vista e pensada como o oposto da realidade objetiva e natural, podemos observar que todas as formas abstratas são definidas a partir de relações com formas dessa realidade, e que estas resultam de uma produção estética subjetiva exteriorizada por um individuo a partir de suas experiências.
“Uma obra de arte consiste em dois elementos, o interior e o exterior. O interior é a emoção na alma do artista; essa emoção tem a capacidade de evocar uma emoção semelhante no observador. Estando ligada ao corpo, a alma é afetada através dos sentidos – o sensório. Assim, o sensório é a ponte, ou seja, a relação física entre o imaterial (que é a emoção do artista) e o material, o que resulta numa obra de arte. E, por outro lado, o que é sentido é a ponte do material (o artista e sua obra) para o imaterial (a emoção na alma do observador) [...] O elemento interno, isto é, a emoção deve existir; caso contrário, a obra de arte é uma impostura. O elemento interno determina a forma da obra de arte.”(KANDINSKY apud READ,1974)
Em geral, ela pode ser definida pela pesquisa por meios específicos de linguagens, nos quais os artistas, deixando de lado o discurso descritivo, voltaram-se então para a potencialização da plasticidade dos materiais, das técnicas e dos recursos formais e cromáticos. Uma das direções mais importantes tomadas nessas pesquisas foi a depuração visual progressiva, que visava a busca de elementos formais e cromáticos essenciais, que podemos encontrar nas obras de Malevitch e Mondrian – principais representantes do Suprematismo e do Neoplasticismo respectivamente - este último chegou a um nível de depuração tão extremo que segue sendo referência em projetos de design de produtos até os dias de hoje.
REFERÊNCIAS:
DELEUZE. Gilles, A Imagem-Movimento. Brasilia : Editora Brasiliense, 1983
GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC Editora SA, 1999.
READ, Herbert. História da Pintura Moderna. São Paulo: Circulo do Livro, 1974.
[i] Curso Especialização em Artes Visuais – Cultura & Criação - Unidade 3 - Síntese 5 - Distorção [ii] Curso Especialização em Artes Visuais – Cultura & Criação - Unidade 4 - Síntese 7 - Montagem [iii] Curso Especialização em Artes Visuais – Cultura & Criação - Unidade 4 - Síntese 7 - Montagem [iv] Curso Especialização em Artes Visuais – Cultura & Criação - Unidade 4 - Síntese 8 - Abstração